"O que ELES queriam?"
Um cotovelo entrou direto na minha costela, filhadumapulta, no mesmo instante olho pra trás e tudo se passa, as cabeças, os corpos passando, mais rápido que num instante – é uma confusão. Estamos aguardando a Palavra, aquela que inflará a massa, o galpão está cheio, já anoiteceu, a demora – desdas três horas –, me perdi dos meus conhecidos, estou cansado, minhas pernas doendo, meu ouvido doendo – as microfonias –, e ninguém ainda falou nada que prestasse. Pronto, fudeu, a caixa de som arrebentou, principio de tumulto, briga, tira a mão da minha cara, não empurra, não to empurrando, não sou eu, sai porra!
No meio da turba explodem mil discursos, na voz, e não no grito. Não posso ouvir, o dizem ali, vinte metros a frente, mar de gente, penso se não somos desesperados, esperando uma Ordem, desesperados esperançosos esperando a Ordem, num Inferno, uma multidão, mas e agora? Nenhum logos, nada. Esperamos.
De repente, do meu lado, se levanta, com auxilio de dois homens fortes, um homem, de seus 50 anos, ou mais, com uma voz que vai pra FORA, e parece alcançar todos ao seu redor, “me ouçam!”, terno pobre, usado, olhar alucinado, quase em transe, a mão tremendo, um nervosismo amalgamado a excitação, começa: “Fico impressionado com a velocidade dos amores, com a raiva e violência com a qual alguns de nós, jovens e cheio de vida”, aqui ele pausa um pouco pra pegar ar, “se jogam rumo a novas paixões, saltando para outras vidas e morrendo pelo caminho, numa guerra onde o sangue escorre, mas muito mais lágrimas e gritos, e corpos destruídos, pela doença, pelo cansaço, pelo sexo”. Um estranho silêncio paira ao seu redor, que não impede a barulheira refletida no zinco do teto calorento esfriando na noite vinda das milhares de pessoas que se amontoam na reunião.
“Essa rapidez, avidez, ganância” fala isso cuspindo baba em mim, bem rápido, “parece ser de uma alegria indizível, apesar do sofrimento e mágoas, eternas esperas e instantes evanescentes”, aqui me perdi, tentando achar um espaço pra colocar meu pé, “sussurros de gloria, paraísos fugazes, erguidos sobre todo o tempo perdido, apartado daquilo que dura, daquilo que permitiria um homem chegar ao fim da vida tranqüilo”, cada vez mais pessoas se espremem em volta dele e tentam ouvi-lo, “mas já morto há muito, pulsa nas esquinas, na dança, nos corpos em embate – qualquer embate, mas na verdade essas grandes lutas silenciosas travadas durante dias e anos entre duas, ou às vezes muito mais pessoas”, surge um principio de palmas e gritos, esparsos/dispersos/espalhados, pra falar como o velho.
Um cara o ajuda – agora já tem camadas de pessoas em volta dele, parece um formigueiro, ou cupinzeiro. “O que eles esperavam?” Ele gritou isso, no meu ouvido – já estava desistindo do discurso dele. “O que queriam com isso? Podíamos resumir em palavras, mas nunca saberemos. Eles se foram” – o cara que o segurava de repente solta alguém bateu nele, não deu pra ver, estava com o sapato do velho na minha cara, ai! minha coluna foi empurrada, me afundei entre corpos, joelho no chão, calça rasgada, muita gritaria, não tem pra onde ir, abram as portas!, Calma!, calma. A coisa se acalma um pouco: reagrupam-se, alguém consegue o microfone, o microfone foi consertado, Aê! AÊ, palmas, todo mundo feliz, e minha calça rasgada. Do meio da multidão mesmo, nosso herói continua “o que ELES queriam?” gritou de novo e o pessoal gostou, uma alegria corria entre os rostos. “O que QUERIAM com isso? O que restou, o que sabemos, o que fica são os brilhos intensos de luzes distantes, é a memória dos reflexos de sol no metal precioso que eles formaram ainda em vida, e ainda que não fossem perfeitos, tamanha intensidade só pode ser estranhada, e se não sentimos um calafrio ao pensar naquele que andou quilômetros numa chuva num dia qualquer e por um amor banal, quando estava tranqüilo e podia continuar em seu abrigo, e morreu numa manhã de domingo, atropelado, a própria esperança morta, à procura de seu amado perdido, este certamente numa situação parecida, quem sabe?, se não pensamos nisso não entendemos NADA” grito do velho que cuspia agora muito, feio mesmo, e gritos e aplausos da macacada aglomerada, minha morte subjetiva: a partir de agora, eu juro, sou um corpo apenas, pronto pro que der e vier “– ainda que este fosse um dramático qualquer, com seus pedidos inúteis, seus desesperos fingidos e demandas comoventes – como nós mesmos por vezes. E as intensidades, essas enormes diferenciais de potência”, do que ele está falando?, “que se criam entre alguns, que fendem o que se chama de dia-a-dia numa ruptura sem igual, mostrando um outro lado cheio de forças e por vezes maldito, são incríveis, forçando em pequenas partes o mundo mudar um pouco”. Gritaria geral: somos a fera que ele domou, e isso tudo não passa de um circo sem espectadores.
E vem mais, pensei, devido a longa pausa e gritaria de palavras de rodem, vamos quebrar o banco, vamos pra Igreja! Etc, que tinha acabado. “O que impede? O que impede que um homem ultrapasse aquela parede? ‘Nada’ dizem eles, nada, num brado assustador. Nada… é sempre como se eles fossem nada”, nós nunca somos nada, grita alguém e de repente a coisa ecoa, NADA, nada!… “nunca existissem, nunca contassem, morrendo por ai, nas margens, no silencio da casa de sua mãe, com a aids e todas amarguras, sem filhos, sem emprego, sem vida. O que era glória, a própria violência contra a violência maior, a afronta do forte que não pode ganhar, não passa de um móvel antigo, afastado e guardado, cheio de poeira, esperando o fogo e as cinzas, ou sua demolição e o lixo”. Ah! Agora acho que to começando a entender.
“E ainda assim, não ficamos tristes. Uma baforada dessa de ar nos nossos pulmões incessantemente transformados em meros filtros de ar-condicionado nos enche de vida, nos tira o sossego, nos transborda de angustia”. O discurso dele vai como se fosse o mundo, desliza no ar, olhares atentos, ouvidos preparados, massa de carne em prontidão, “Queremos caminhar dias pelo deserto, sem rumo, sem esperar encontrar nada. Porque, afinal, vale mais a pena ‘burn out than fade away’. E os corpos em chamas, e os dramas em tragédias, e as tragédias na velha mesma velha história do mundo, e os filhos e os netos e as baratas e os ratos e tudo mais, como dizem os escritores. Mas nem ao menos notar isso nos ajuda: a ajuda, dizem, não ajuda, e queremos ajudar a todos, mas começando por nós mesmos”. Tá acabando, tenho certeza, eu sinto, sentimos, viramos só isso, os sentimentos de uma força da natureza, prestes a lançar seus instintos sobre a realidade.
“E de repente nos vemos lado a lado com eles, em suas revoluções diárias, e nos sentimos orgulhosos, pois não são intenções ou resultados que nos fazem tremer de medo e nos encher de coragem, mas aquele olhar ardente onde um rio passa arrastando tudo”. O homem esgoelava-se, encharcado de suor, mal parecia sustentar a voz, quase desabando –na verdade parecia ser sustentado por ela. “Eles podem, eles podem muito. E o medo, tão rápido quanto nos excita, nos domina, pois nossa admiração entrega nossa impotência”. Parece que cada homem e mulher na audiência reflete sobre seu olhar vazio e sem cor como quem olha um abismo – momento de tristeza antes do clímax, sem dúvida. Estão todos prontos. “Mas…Se esses, que são eles, não forem nós, quem seremos?” Tudo fazia sentido então, mesmo sem sentido. Não sabia o que aconteceria, mas devia ter acontecido alguma coisa, não era uma festa, não era uma orgia, não era a revolução, não era Deus e seus enviados, nem mesmo o Apocalipse. Devia acontecer, deve acontecer, acontece. Estávamos prontos.